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Imagem da Capa: Desenho, 1994

Outubro - Dezembro 2008

Maria Lucília Moita 31ª Exposição Galeria dos Paços do Concelho

Escrever sobre a pintura de Maria Lucílio é uma espécie de exercício de interpretação. (...)

Escrever sobre a pintura de Maria Lucílio é uma espécie de exercício de interpretação. Para quem, como eu, a conhece, é quase um jogo: um vaivém entre ela e a pintura, entre o que nela está explícito e o que está explícito nos seus quadros, para depois podermos decifrar os enigmas que nela e neles estão.

 António Alçado Baptista, 1984

 

  

Não sei onde são nem donde são, os sítios e os desenhos.

Sabe a autora, por lembrança dos dias tranquilos de os fazer, da mão que trabalhou e não esquece — mas não os desenhos, que só a si próprios se conhecem. Como nós, que os olhamos, se soubermos vê-los.

A dificuldade ali está, no ver o que os desenhos são: estes ou outros, todos eles, por linhas e sombras que têm. Não se trata de identificar, isto é de fazer idêntico (ou constatar se o está) mas de ver: um desenho é só e imediatamente um desenho; depois será, para nossa facilidade, a representação de algo, um sítio, por exemplo. E será, depois ainda, ou voltará a ser finalmente, um desenho — ou o desenho que era, no convívio necessário do nosso olhar inventar.

De invenção se trata, não de descoberta: de fazer vir, por sua verdade exato, não de buscar, por debaixo da aparente, a sua razão suposta. O desenho inventa(-se), não mostra(-o): é conhecimento em ação, não descrição do agido.

Por dentro se lê, em cada ponto das suas linhas, em cada passo das suas manchas, e no que entre elas está e flui, e explica – pelo branco do papel. Que o desenho, enquanto tal, é feito com cheios e vazios, positivo e negativo.

… Tudo isto se sabe, ou devia saber-se, seio qual for o modo de o escrever, e a moda até, por vezes, quando ela foi de semiologias e estruturalismos. Há decerto um ponto de vista para os desenhos ditos de paisagem que aqui estão expostos; de paisagem, quer dizer solicitados por uma perceção sensível de sítios naturais. (Nem bonitos nem feios, ou bonitos porque o desenhador assim os achou, como disse um dia, e definitivamente, Silva Porto ao Ramalho). Região abrantina de Ribatejo, no caso presente se quisermos saber. E uma desenhadora por diante, olhando. Mas aquilo que ela olha interessa às árvores, aos silvados, às ramagens quebradas, às pedras cobertas de musgo, aos caminhos de terra branda que são olhados; outra coisa é o desenho que, esse, interessa ao papel sobre o qual, ou dentro do qual (o papel é um mar liso de água branca...) ela põe traços de leveza vária, fumos de carvão, sombras graduadas... E nesta caligrafia pessoal, singelo de espírito, sincera de mão, que naturalmente se compõe pelo respeito de si própria, uma imensa variedade de escrita se realiza aqui, quadro a quadro, imagem a imagem, em espetáculo-exposição, muito outro que o espetáculo-natureza, aparente, de que partiu, em coincidência de árvores e desenhos...

Isto é, com certeza, raro de acontecer hoje, assim. Naturalismo que seja, desde há cento e cinquenta anos, mas não de então datado, porque o tempo passou lentamente com seu discreto silêncio, sobre esta maneira serena e autêntica de estar no desenho, estando na vida a desenhadora.

 

José-Augusto França, Dezembro de 1995

Catálogo CCB

  

 

 

Leonardo foi o primeiro a chamar atenção dos pintores para os muros decrépitos. Aquele que soubesse olhá-los, dizia, neles poderia encontrar tudo o que a sua imaginação procurava: batalhas e paisagens, bizarras figuras, animais fantásticos, as mais intrigantes aparições. As paredes que o tempo manchou de humidade, roídas na caliça e na argamassa pela erosão dos anos, entravam assim no reino da arte, como um primeiro teste de Rorschach. Quantos fantasmas se projetaram depois nos acasos que a ruína desenha sobre a pele apodrecida das velhas arquiteturas! Lucília Moita, contudo, ao olhar as paredes maculadas e os muros gastos pelo tempo, não se abandona às vozes da imaginação fantástica ou fantasmática; não se vê aí as faunas híbridas ou as bizarras flores suscitadas pelas tentações de um inconsciente inquieto; antes sonha, sobre os indícios e as máculas, a brancura recuperada da cal do princípio. As suas pinturas são muros onde o vento e a luz evocam as analogias aéreas de uma animação orgânica, globular, vegetalizada, memórias remotas de células, arquipélagos de corais à tona do branco. Há aí uma pureza matutina cobrindo as palpitações lenhosas de uma vida discreta, imóvel, e a própria luz que se coagula sobre a tela com a lentidão da madrepérola.

Lima de Preitos, 1977

 

 

 

Nas várias fases do desenho e da pintura de Maria Lucílio Moita há aspetos comuns e um deles é decerto a procura de um mistério ou de um saber secreto na realidade das coisas concretas.

As árvores e muito especialmente as oliveiras, com a sua carga simbólica de paz e outros sentidos (adivinhados ou pressentidos), que tem a ver com o angústia e o fervor, sob a aparência de serenidade, são na sua obra a perfeição conquistada — uma gramática da pureza, do traço nu e perfeito, que se conjuga como oração.

Urbano Tavares Rodrigues, 2001

 

 

 

 

Na obra de Maria Lucília Moita, o retrato aparece muito cedo, desde as fases de aprendizagem. Vendo essas primeiras obras, em desenho e em pintura, poderá parecer-nos, numa visão superficial, que estamos diante de meros exercícios pictóricos. Mas logo descortinamos, para lá da natural circunstância oficinal, uma autêntica procura da verdade que habita cada ser, aquilo que a própria autora definiu, em 1971, como sendo a meditação sobre o enorme [...] apertado / mundo de dentro.

O retrato, na obra de Maria Lucília Moita, nasce de um genuíno e profundamente cristão amor pelos outros, que levou a autora a tomar os humildes, os doentes, os que sofrem e muitos dos seus familiares e amigos, como sujeitos de corpo e almo, tanto de pinturas, como de muitas histórias e poemas que foi escrevendo em contraponto à pintura, captando, nos instantes fugidios da expressão ou em situações vividas, a verdade interior de cada um, plasmada numa fisionomia...

Em Maria Lucília Moita, o retrato tornou-se um modo privilegiado de aceder à cartografia dos sentimentos mais profundos que definem o rosto de cada pessoa, um pouco à maneira da pintura de paisagem da matriz taoista, que é, como foi sublinhado por diversos estudiosos da arte chinesa, equivalente ao ato de retratar um sentimento de elevação.

Nessa dimensão tão original, ele acompanha e diversifica o objetivo final de toda a pintura de Maria Lucília: pintar a paisagem interior, mesmo que seja através da paisagem de um rosto.

 E A. Baptista Pereira, 2004

 

 

 


Catálogo

 

 1. Terra desintegrada, 1974 - óleo s/ platex, 76 x 64 cm

2. Nuvem vermelha, 1974 - óleo s/ platex, 64 x 76 cm

3. Árvore louca, 1975 - óleo s/ platex, 64 x 76 cm

4. Bailado de troncos, 1976 - óleo s/ platex, 64 x 76cm

5. Paisagem de um rosto, 1987 - óleo s/ tela colada s/ platex, 40 x 30 cm

6. Rosto esfíngico, 1990 - óleo s/ tela colada s/ platex, 40 x 30 cm

7. Auto-retrato, 1994 - óleo s/ tela colada s/ platex, 30 x 25 cm

8. Desenho, 1986 - carvão s/ papel, 50 x 65 cm

9. Desenho, 1986 - carvão s/ papel, 50 x 65 cm

10. Desenho, 1987 - carvão s/ papel, 65 x 50cm

11. Desenho, 1988 - carvão s/ papel, 50 x 65 cm

12. Desenho, 1988 - carvão s/ papel, 50 x 65 cm

13. Desenho, 1989 - carvão s/ papel, 65 x 50 cm

14. Desenho, 1990 – carvão s/ papel, 50 x 65 cm

15. Desenho, 1990 - carvão s/ papel, 50 x 65 cm

16. Desenho, 1995 - carvão s/ papel, 50 x 65 cm

17. Desenho, 2008 - carvão s/ papel, 50 x 65 cm

 

A Câmara Municipal de Tomar agradece à autora a colaboração amavelmente prestada.

 

 

 

 

O artista e a obra

Maria Lucília nasceu em 1928 em Alcanena. O seu interesse pelo desenho e pela pintura levou-a a tomar lições com João Reis, entre 1944 e 1946, e a frequentar a famosa coleção de arte de seu primo Dr. Anastácio Gonçalves dele recebendo críticas animosas e uma orientação de cunho naturalista, que a levaram a expor pela primeira vez individualmente, em 1958, na S. N. B. A. tendo sido admitida nos seus Salões de Primavera e Inverno desde 1948, e nas exposições do Grupo de Artistas Portugueses de 1958 a 1983. Realizou mais exposições individuais em Lisboa nas galerias do Diário de Notícias (1960, 1969), de S. Francisco (1980, 1982), Atrium da Imprensa (1986) e António Clara (1987), Centro Cultural de Belém (1996), e outros locais, tendo apresentado exposições retrospetivas em Abrantes, Santarém, Coimbra (Museu Machado de Castro), Caldas da Rainha (Museu José Malhoa), Portalegre, Porto, desde 1977. Além de outros prémios, recebeu a Medalha de Ouro da Câmara Municipal de Alcanena, e de Mérito Cultural da Câmara Municipal de Abrantes, na sede da qual expôs frequentemente. Está representada no Museu do Chiado, no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, na Casa-Museu Anastácio Gonçalves, nos Museus das Caldas da Rainha (José Malhoa), da Nazaré, Golegã, Torres Novas, Setúbal e Tomar. Publicou três livros de poesia (“Tempo Circulado”, 1967, “Apertado Mundo de Dentro”, 1971, “A Segurar o Tempo”, 1974) e o volume “Aonde me leva a Memória”, 1992.   

Coordenado por Fernando António Baptista Pereira, diretor do Museu de Setúbal, Maria Lucília Moita publicou em 2004, edição da Câmara Municipal de Abrantes, um volume bio-bibliográfico, largamente ilustrado, com múltiplas reproduções de pinturas e desenhos, recolha de textos autobiográficos e citações poéticas e textos de Urbano Tavares Rodrigues, A. Alçada Baptista, Cruzeiro Seixas, Lima de Freitas, Lagoa Henriques e J.-A. França (prefácio da exposição no Centro Cultural de Belém). Uma notável atividade pedagógica junto de crianças e adolescentes, no quadro do “atelier” de Abrantes da artista deve ser ainda mencionada.

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