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Imagem da Capa: 4B 2E, 1994
Escultor de mulheres em seus corpos doces e polidos, maciços ou ligeiros, espreguiçando-se como árvores ou explodindo como flores, Cutileiro esculpiu também, um dia, uma figura de homem e, outro dia, outra. Na verdade, não se trata de homens reais, ou ainda menos reais que as mulheres figuradas: D. Sebastião e Camões são destinos, ideias, muito mais do que ossos, carnes e tripas da nossa espécie — e um por causa do outro...
(A estátua de Logos, só o 25 de Abril a salvou de iras nacionalistas locais; à de Camões foi recusado o liceu desse nome). Era mau exemplo estético aos escolares que o Estado devia formar e bem, em sentimentos e gosto. Aí não houve revolução que valesse à estátua: a II República já estava e ficou.
José-Augusto França, 2000
… vimos destacar-se João Cutileiro (1937 —) pela enormidade da sua obra, figurativamente original desde os seus princípios, no inicio dos anos 60. Formado em 1955 — 1959 na Slade School de Londres, com Reg Butier, e tendo recebido aulas de Henry Moore, o escultor mítico da sua geração, Cutileiro só regressou de vez a Portugal em 1970, embora já conhecido aqui em exposições desde 1961, e foi em Lagos que escolheu viver e trabalhar, até 1985, e desde então em Évora, com ateliers montados para uma produção muito abundante que, em 1990, teve retrospetiva no CAM e também exposições na Alemanha, pela Europa e em Nova lorque. É variada a sua produção, com variada exigência, entre grandes nus, corpos magníficos em torção imaginosa, sensualmente polidos mas talhados com dureza nas articulações, ou pequenas peças de erótica doçura nos seus ademanes, estatuetas mimosas de fragilidade propositada. Mas também grandes peças duplas, corpos cortados ao meio e encaixados em elementos móveis, com cabeleiras em folhas de árvores palpitantes, ou ainda outro tipo de imagens suavemente formadas, peixes ondulantes ou flores em ramos, cabeças de retrato também, com evidente ironia: tudo sai das mãos hábeis de Cutileiro com uma facilidade provocatória. Em 1970, entre essas peças nasceu um D. Sebastião encomendado para uma praça de Lagos que teve problemas de aceitação oficial, tal era a diferença iconográfica entre todo um discurso nacionalista até então imposto na estatuária pública e esta figura de herói sem tino, de desgraça potente; como o foi, dez anos depois, a estátua de um Camões encolhido, sem sentido de heroísmo, triste e desmistificado, que mal teve sítio público possível, era Cascais...
Já encontrámos correspondências de imagens a estas figuras durante um quarto de século, mas estas foram as duas maiores peças de Cutileiro, no seu empenho crítico de uma história nacional — e de uma escultura portuguesa contemporânea e necessária. Mais dez anos, em 1990, uma série de altos guerreiros de pedras talhadas numa violência primitiva constituíram uma obra de terrível coerência política e plástica. Em 1998, o seu monumento ao 25 de Abril, sujeito a críticas quanto à sua imposição local, ao alto do Parque Eduardo VII, entrou no jogo sensual e erótico que se multiplica em toda a obra do escultor e que mereceu em 1992 o prémio AICA.
José-Augusto França,
História da Arte em Portugal — O Modernismo, 2004
“Corpos de lua — flores de pedra” bem poderio ser título para uma grande parte da obra de Cutileiro.
Prenhes de humor grotesco, senão exprimindo flagrante desumanização estrutural (os seus “Guerreiros”) testemunham, de facto, o radical antibelicismo de Cutileiro. Hoje, Cutileiro bem será integrável no restrito número de artistas nacionais que souberam sondar a grandeza (da escultura antiga) situada nos antípodas do gasto pelo grandioso.
Fernando Pernes, 2000
Cézanne sugeriu que era necessário refazer Poussin a partir da observação da natureza. João Cutileiro refez Ingres, desenhando diante de um modelo vivo. E vice-versa. Porque ninguém contempla da mesma maneira uma paisagem ou um corpo humano, antes e depois de ter aprendido a ver com Poussin ou lngres. Ou com Cézanne ou Cutileiro...
Dois desenhos presentes nesta exposição explicitam a sua relação com Ingres. Um deles representa uma mulher nua sentada, com as costas voltadas para nós. A invisibilidade do rosto, das mãos e dos pés anula a possibilidade de uma investigação psicológica ou teatral. É um torso lisamente representado, em contraste com as texturas dos panos: puro desenho. O outro refere o célebre quadro de Ingres intitulado “A Fonte”, onde o mestre francês construiu uma alegoria, representando uma mulher nua com um cântaro inclinado, que ela apoia no ombro e faz despejar a água.
Cézanne considerava este quadro de Ingres paradigmático do que devia deixar de ser feito em pintura: recorrer a uma cena alegórica ou a qualquer aspeto “literário”. Para melhor servir o tema “Fonte”, seria preferível representara água brotando da rocha. Mas é inegável que o nu ingresco é um achado magistral, que condensa muita experiência artística adquirida na Europa ao longo de vários séculos e que foi imediatamente admirada como composição onde “o ideal e a natureza fundem-se em proporções perfeitos” (Théophile Gautier).
Ora, é a nu que interessa a Cutileiro. O artista compreendeu que a posição de quem ampara um cântaro no ombro, permite representar os dois braços levantados, dando ocasião a que se possa contemplar as formas cheias do peito, do ventre e das coxas. A mulher, assim oferecida, permanece porém psicologicamente secreta, inocente perante quem a observa, pois está empenhada em segurar o cântaro.
Neste nu, a posição dos braços é clássica. O traçado dos contornos e a articulação volumétrico adquirem porém movimentação moderna.
Na sua globalidade, a figura aparece num plano enviesado, em relação ao plano do suporte. Mas há rebatimentos para a frontalidade, para trazer aos olhos o máximo de informações colhidas através de concisos e rápidos signos cursivos. E estes são variáveis. Que se compare, neste desenho, à direita, o contorno da anca com os dos braços que seguram o cântaro. Em baixo, o contorna é reforçado com traços sincopados que explicitam modularmente a mudança de direção das curvas das ancas e sugerem volumes enfaticamente. Em cima, o traçado é singelo, leve, passando, no mesmo plano, dos braços para o rosto e paro o cântaro.
Todo o traçado é rápido, neste e em todos os desenhos de Cutileiro, por fidelidade à perscrutação visual. A vivacidade do ato visual empático e a do carpo do modelo manifesta-se nos deslocamentos subtis do ponto de observação e nas linhas ritmados, ao longo das quais se notam diferenças da pressão exercida pela mão do desenhador.
O trajeto da mão mostra mais do que o instante fixado. É registo da excitação da descoberta do corpo vivo, com os seus potenciais movimentos. Tanto ou mais do que o modelo, é o próprio artista que é revelado nos seus desenhos. O seu prazer é o seu rigor. E, assim, Cutileiro ensina-nos que a volúpia é uma forma de conhecimento.
Rui-Mário Gonçalves, Tomar, 2008
Catálogo
1. Os jeans, 1994 – Calcário, 72 cm
2. Árvore, 1995 - Calcário e bronze, 250 cm
3. Figuro esticada, 1995 – Calcário, 120cm
4. 4B 2E, 1994 – Calcário, 57 cm
5. Guerreiro 1, 1998/99 - Diorito negro de Sever do Vouga, 122cm
6. Guerreiro 2, 1998/99 - Diorito negro de Sever do Vouga, 127cm
7. Guerreiro 3, 1998/99 - Diorito negro de Sever do Vouga, 165cm
8. Guerreiro 4, 1998/99 - Diorito negro de Sever do Vouga, 145 cm
9. Menino com cabelo de latão, 2003 - Calcário e latão, 95 cm
10. Par, 2006 – Calcário, 80cm
11. Sem título, 2001 - Tinta-da-china, 42 x 29,7 cm
12. Sem título, 2001 – Tinta-da-china, 42x29,7cm
13. Dora, 2003 - Tinta-da-china, 70 x 45cm
14. Sem título, 2004 – Tinta-da-china, 42x29,7cm
15. Paula, 2004 - Tinta-da-china, 42 x 29,7 cm
16. Leslie, 2004 - Tinta-da-china, 42 x 29,7 cm
17. Sem título, 2006 - Tinta-da-china, 59,4 x 42 cm
18. Sem título, 2007 – Tinta-da-china, 42x29,7 cm
19. La source ML, 2008 - Tinta-da-china, 61 x 87 cm
20. Banho de Ingres (ML), 2008 - Tinta-da-china, 61x81cm
21. Helene Fourment (RM), 2008 - Tinta-da-china, 61 x 87cm
22. Elsa J, 2008 – Tinta-da-china, 61 x 81cm
A Câmara Municipal de Tomar agradece ao autor a colaboração amavelmente prestada.
O ARTISTA E A OBRA
João Cutileiro nasceu em Lisboa em 1937. Entre 1946 e 1952 frequentou os ateliers do pintor António Pedro e dos escultores Jorge Barradas e António Duarte. Na curta passagem pela Escola de Belas-Artes de Lisboa constata que qualquer desejo de experimentação e de fuga ao cânone da estatuária oficial só seria possível fora de Portugal. Parte para Londres em 1955 e matricula-se na Slade School of Art, onde foi aluno de Reg Butler e contactou com Henry Moore.
Datam de 1953 as primeiras esculturas em gesso e pedra, que anunciam a preferência de Cutileiro pela utilização de materiais não plásticos, nos quais se chega à forma pela remoção do supérfluo. A partir de meados da década de 60, a troca dos instrumentos tradicionais pela maquinaria elétrica possibilitou uma outra relação com a pedra, naquilo que o artista designou como a “caligrafia da máquina”. Os encaixes e as assemblages com mármores de diferentes cores passam a dar corpo a uma nova conceção da escultura, entendida como construção.
O polémico “D. Sebastião”, erigido em Lagos em 1973 e do qual o Núcleo de Arte Contemporânea possui uma das maquetas, configurou uma rutura histórica em termos de monumento iconográfico e inaugurou na produção do escultor uma temática dedicada a figuras e acontecimentos históricos. Contudo, na escultura, no desenho ou na fotografia, a obra de Cutileiro é predominantemente centrada na figura feminina e na expressão de um erotismo livre de tabus e moralidades, empenhado em despertar no espectador uma atitude de contemplação e surpresa.
Depois de uma prolongada estadia em Londres, regressou definitivamente a Portugal na década de 70, fixando residência em Lagos, onde imbuído de uma atitude pedagógica fundou o Centro da Pedra de Lagos, por onde passaram muitos dos artistas responsáveis pela renovação da escultura nacional nas décadas de 80 e 90.
Desde 1951, data da primeira exposição individual em Évora e Monsaraz, João Cutileiro conta no seu percurso com mais de cinquenta apresentações individuais em Portugal, Alemanha, Estados Unidos, Suíça, Bélgica, Macau, Luxemburgo e Suécia. Premiado pela Fundação Calouste Gulbenkian na II Exposição de Artes Plásticas (1961), recebeu o Prémio da Academia Nacional de Belas-Artes em 1979 e o da Associação Internacional dos Críticos de Arte em 1993, ano em que foi condecorado com o grau de Oficial da Ordem de Sant`lago da Espanha.
O artista que atualmente vive e trabalha em Évora está representado, entre outras, nas coleções da Fundação Calouste Gulbenkian, do Museu do Chiado, do Museu de Évora e Museu Municipal de Tomar, e, autor do monumento ao “25 de Abril”, ao alto do parque Eduardo VII, tem obra pública em mais de vinte cidades em Portugal e no estrangeiro.
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