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Imagem da Capa: Varanda da Rua da Palmeira
As obras de Bernardo Marques são lentas de ver, mas quem as tiver visto algo aprendeu do tempo que as cosais têm em si próprias – árvores, terra, casas, escadas de rua, um alpendre, um muro…
Andaram os naturalistas do Silva Porto a tentar, com calcorreadas minúcias, fotografar sensivelmente o país – e todos os resultados não deixaram de ressumar uma moleza, de terra e de gente, que a sinceridade a cada um deles impôs. Exceções, com certeza, nos melhores casos do próprio Silva Porto ou do Vaz, ou do D. Carlos, ou no caso sempre outro do Malhoa que da moleza faz qualidade e definição. Mas o total foi baço e António Nobre disse-o (“Qu’é dos pintores…” – etc.). Outra denúncia veio do Cesário, pelo direto vigor da sua pena – e, pena por pena, Bernardo Marques ilustrou-lhe os versos. Não certamente por acaso mas porque tal era preciso demonstrar.
Nobre e Cesário, melancolias de fim de século ao anoitecer, com solidões de alma, e insuportável o mundo… Uma certa e indispensável distância por causa disso tudo, que é feita de ironia, de bondade também – e de tempo que anda entre as coisas representadas, quem as representa a pinta e quem as vê e repinta, ele e nós, num imaginário comumente possível.
Assim é a arte de Bernardo Marques, grandes ou pequenas sejam as obras, em largas folhas de papel ou em páginas de álbum de croquis, traçadas ao correr dum passeio, ou dum olhar lançado da janela sobre um jardim ou as casas defronte. Com o Tejo ao fundo e um tocador de realejo um baixo. Ou o mar do Algarve natal, ou pedregulhos da Beira – ou a doçura firme de várzea de Colares onde a casa do pintor já fora doutro que era músico também, e dandy. Dandy Alfredo Keil como Nobre e como Cesário. E como Bernardo…
O círculo desenha-se e fecha-se sempre de certa maneira cultural, de referência em referência, por alusão ou lembrança. Por evocação, sobretudo e portuguesa.
Esta qualidade portuguesa de Bernardo Marques é ou será difícil de entender: não é vistosa nem saloia, mas discreta, e a cor que a anima está no preto-e-branco dos desenhos, à pena ou de lápis gordo, esbatido ou apoiado no papel, numa escrita sempre de arabesco que capta a tonalidade e representa todo um código de colorido. E por isso se dirá deste homem dos anos 20, que nas décadas ingratas de 30 e 40 perfez o seu destino de artista, contra a desistência de uns que eram da sua geração e sem complexo antes sonhos ou ilusões de outros mais novos, que ele é o mais sensível e mais profundo dos paisagistas que desde o século passado tivemos. Senão o único, verdadeiramente.
José-Augusto França (1981)
… Bernardo pintou muito menos do que desenhou. Algumas das suas aquarelas do último período, exaltam, contudo, o ofício do pintor praticado numa espécie de silêncio, de intimidade e de apaixonada leitura de paisagem, da natureza. O cosmopolitismo da sua geração soube, nalguns casos, regressar a um plano de interioridade e da confluência nacional. Bernardo foi, possivelmente, dentre eles o mais admirável porque manteve sempre, e, em simultâneo, uma veia crítica tão necessária e pessoal face à vida, quanto o foram os seus momentos de entrega, de uníssono e de descoberta face à natureza que vivia e amava, sem tumulto, de um modo extremamente sensível, civilizado.
Já foi dito, e eu partilhado a ideia, de que Bernardo Marques terá sido o paisagista maior da sua geração, geração que, em grande parte pelo paisagismo muito se definiu. De facto a paisagem, nela, faz-se pintura, quantas vezes, só pelo desenho. A “touche”, a caligrafia tão variada, tão rica, tão obediente e livre ao mesmo tempo, organizam no preto-branco todos os valores rigorosamente iluminísticos e a identificação sentimental dos lugares onde repousa a observação amorosa e demorada do pintor. No preto-branco dos seus desenhos a cor não precisa de ser muitas vezes cor, para se tornarem coloridas e o desenho não se atinge, na sua qualidade de êxtase, se não se atingir a cor que concebe e nele se oferece. Bernardo com o mesmo traço e pulsação traduzia a sensação visual do mar, como da terra seca, sem árvores, ou de campos amenos e da floresta.
O País apareceu a muitos pela mão do seu traço. Sem qualquer demagogia ou nacionalismo fácil, o artista que os criticou por revistas e jornais tanto quanto pode e por isso se celebrizou também, criou ainda uma tipologia (que vai do burguês citadino dos anos vinte e trinta ao saloio das feiras dos anos cinquenta) que ficou, com as personagens de Eça de Queiroz pelo meio, um prodígio da ilustração portuguesa. Desenhos sem violência, granciosos, mas possuidores de uma ironia que vitima mais do que o excesso e o gesto exaltado.
Se, por um lado, um impressionismo que não houve em Portugal reaparece nele embora que tardiamente compreendido ou feito, mas culturalmente amparado e justificado, por outro, também a legitimação lírica da pintura portuguesa nele se exemplifica e admiravelmente se afirma. Há que não esquecer como a caricatura insistente do começo veio a original, muito mais tarde, uma figuração de outro tipo, rica de compreensão humana de ternura, de lirismo, e por vezes dramática, também. De quase todos estes aspetos haverá que ver alguma coisa nesta exposição.
… É indispensável lembrar, que essa elegante personagem que foi Bernardo Marques, companheiro de grandes poetas e escritores, esse dandy do Chiado e de uma geração de artistas, viveu e fez parte importante da sua obra, num certo aspeto a mais importante mesmo, a dois passos de Sintra e de Colares, na Eugaria. Aí, vi eu nascer obras tão belas e inimitáveis como as paisagens de Colares, ilustrações tão únicas como as que fez, entre tantas outras, para o livro de Cesário Verde. Nunca terá plantado uma árvore, creio, nem que lhe desse algum jeito de mão, ou gosto, pegar numa enxada. Mas soube sempre olhar uma árvore, o mar, o céu, emocionar-nos com um qualquer desenho saído desse olhar. E sempre, se soube rir-se do grotesco, do ridículo, soube entusiasmar-se com um rosto de camponês ou brincar com os seus gestos. Na obra de Bernardo Marques coube sempre que a comédia, quer a gravidade da vida, o seu peso, também. E para o fim, e só por ela, a paisagem, com uma plenitude em que se ganha e se perde, uma amargura final e definitiva.
Fernando de Azevedo (1987)
CATÁLOGO
1 – Parque de Berlim (1929) a.d. 24,8x24,8 – Lápis de cor s/ papel.
2 – Noite de Berlim (1929) a.d. 23,9x24, – Guache s/ papel.
3 – Montparnasse (1934) a.d. 26,7x20,8 – Tinta da China s/ papel.
4 – Montparnasse, Paris (1935) n.a.,d. 29,5x23,1 – Tinta da China s/ papel.
5 – Aspecto de Paris n.a.,n.d. 28,8x21,4 – Tinta da China s/ papel.
6 – O Sena n.a.,n.d. 29,0x21,3 – Tinta da China s/ papel.
7 – Parque (1932) a.d. 45,3x34,0 – Tinta da China s/ papel.
8 – S. Francisco, La Fiesta, Califórnia (1939) n.a.,n.d. 45,3x34,5 – Tinta da China s/ papel.
9 – Bailado em S. Carlos n.a.,n.d. 26,5x20,5 – Tinta da China s/ papel.
10 – Ardinas a.,n.d. 23,5x28,5 – Tinta da China s/ papel.
11 – Ardinas a.,n.d. 24,5x28,5 – Tinta da China s/ papel.
12 – Toureiros (1956) a.d. 41,0x56,0 – Tinta da China s/ papel.
13 – Jardim a.,n.d. 23,2x29,2 – Tinta da China s/ papel.
14 – Atelier da Rua da Palmeira a.,n.d. 38,5x49,0 – Lápis litográfico e tinta da China s/ papel.
15 – Varanda da Rua da Palmeira a.,n.d. 39,5x40,0 – Tinta da China s/ papel.
16 – Varanda da Rua da Palmeira a.,n.d. 25,0x35,0 – Tinta da China s/ papel, Coleção particular.
17 – Os vizinhos da Rua Palmeira a.,n.d. 36,5x41,0 – Lápis litográfico s/ papel.
18 – Barco e redes a.,n.d. 34,0x44,0 – Lápis litográfico s/ papel.
19 – Barcos a.,n.d. 34,0x44,0 – Lápis litográfico s/ papel.
20 – Foz do Arelho a.,n.d. 25,0x35,0 – Tinta da China e lápis litográfico s/ papel.
21 – Costa do Algrave a.,n.d. 27,7x33,2 – Desenho aguarelado.
22 – Paisagem a.,n.d. 41,5x56,5 – Tinta da China s/ papel.
23 – Eugaria-Sintra a.,n.d. 40,0x55,0 – Tinta da China s/ papel.
24 – Paisagem a.,n.d. 39,7x31,7 – Tinta da China s/ papel, Coleção Fernando e Isabel Pinto de Azevedo.
25 – Árvore n.a.,n.d. 32,0x49,0 – Tinta da China e aguarela s/ papel.
26 – Malabarista n.a.,n.d. 31,9x24,0 – Lápis litográfico s/ papel.
27 – Figuras de circo n.a.,n.d. 32,0x24,0 – Lápis litográfico e aguarela s/ papel, Coleção Prof. Dr.ª Cristina Azevedo Tavares.
28 – Flores n.a.,n.d. 32,0x24,0 – Lápis litográfico e aguarela s/ papel.
Com exceção das que são pertença dos colecionadores, todas as obras apresentadas se encontram em depósito no Museu do Chiado. À sua proprietária, Senhora D. Maria Elisa, viúva do Artista, e aos colecionadores, muito se agradece a gentileza do empréstimo, bem como à disponibilidade, para a realização desta exposição.
O artista e a obra
Bernardo (Loureiro) Marques nasceu em 1899 em Silves e morreu em 1962 em Lisboa. Fez o curso dos liceus em Faro e nessa cidade conheceu os poetas Bernardo Passos e José Dias Sancho. Em 1918 ingressou na Faculdade de Letras de Lisboa, começando a conviver com José Pacheko, Almada Negreiros, Jorge Barradas, o jornalista Vítor Falcão e outros elementos da vida artística intelectual. Nunca tendo querido expor individualmente ao longo da sua vida, participou em numerosas exposições coletivas. Fê-lo pela primeira vez em 1920 na 3ª Exposição do Grupo dos Humoristas Portugueses (14 cartões, 9 dos quais eram impressões do Algarve). O artista que mais admirava nessa época era o alemão Grosz e, em 1927, abandonando a Faculdade de Letras, iniciou uma imensa atividade como ilustrador, sendo desenhador permanente da “Ilustração Portuguesa” e colaborando n` “O Século” e depois no “Diário de Noticias” e em “Kino”. Em 1923, com a revista “Contemporânea”, começou a interessar-se pelo sentido gráfico moderno. Interessou-se também, pela decoração, tanto em Portugal como no estrangeiro. Fred Kradolfer, C. Botelho, Tom, J. Rocha, o arq. J. Segurado foram os artistas com quem mais trabalhou em decoração, sendo de salientar os seus arranjos dos pavilhões nas Exposições Internacionais de Paris, 1937, de Nova York e de S. Francisco da Califórnia, 1939, e na Exposição do Mundo Português, em 1940. Fez numerosas viagens a Berlim e a Paris, já nos anos 20, e depois nos Estados Unidos. Expôs no II Salão de Outono da S.N.B.A., 1926, no I Salão dos Independentes, 1930. Em 1934, expôs em Paris, na Casa de Portugal e no Théâtre de L`Oeuvre. Em 1945 expôs em Lisboa na Galeria Calendas, juntamente com Ofélia Marques, Mily Possoz, Abel Manta, Dórdio Gomes e M. Bentes. Esteve representado em muitas outras exposições coletivas, nomeadamente no I Salão Nacional de Artes Decorativas (S.N.I.), 1949, Bienal Internacional de Bianco e Nero (Lugano, 1952), 20 Artistas Contemporâneos (Galeria de Março, 1953) e 1ª e 2ª exposições Gulbenkian, 1957 e 1961 – na primeira das quais obteve o Prémio de Desenho e na segunda o Prémio de Aguarela. Foi diretor gráfico das revistas “Panorama” (1941-1950), “Litoral” (1944-1945), “Colóquio” (1959-1962). Entre as numerosas obras literárias que ilustrou ou dirigiu graficamente, contam-se os seguintes autores: Eça de Queiroz, Aquilino, Teixeira Gomes, J. Gaspar Simões, Cesário Verde, António Ferro, e a “Carmen” de Mérimée. Desenhou cenários e figurinos para os Bailados do Verde Gaio (S.P.N., 1942). Na ilustração e nos gráficos, Bernardo Marques foi um importante impulsionador do modernismo, mas será no paisagismo que ele irá acentuar o seu lirismo subtilmente romântico, docemente melancólico. Está representado no Museu do Chiado, no Centro de Arte Moderna da F. C. Gulbenkian, etc…
Dicionário da Pintura Portuguesa (Lisboa 1972)
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