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Imagem da Capa: “Retrovisão de Simumis” (1969)

Abril – Junho 2002

Vespeira 9ª Exposição Galeria dos Paços do Concelho

Introdução a uma pintura erótica, a propósito de Vespeira (...)

Introdução a uma pintura erótica, a propósito de Vespeira

Não é por acaso cintilante o traje dos toureiros.

Ao dar-lhe o sol, o seu brilho dardaja de um mondo iniludível. (E à sombra, no escuro que divide a arena, outros dardos partem, disfarçados de azul arroxeado, dos bordados que ficam ardem, submersos). Ao sol, o crepitar estrondoso das luzes, envolve a agilidade do corpo que se atreve e furta, que arrogante e ligeiro, baila uma ameaça. A morte que o fixa, aquela morte imediata que vem nos cornos do boi, é brincada pelo homem, enganada, excitada. E a morte gosta.

Nesse momento, a morte transforma-se em amor – e então, no jogo perigoso, o homem ganha a sua vitória. Morto, a seus pés, o toiro enche de sangue a arena e, sobre ele, o trajo do matador despeja luzes. Tudo é magnificamente cruel e luminoso.

(Da sombra partem brilhos malévolos, como se estivessem empenhados num combate noturno.)

No ardor do toureiro, no jogo de amor e de massacre que mantém com o toiro, na fulgurante ameaça das suas armas, há um exaspero erótico, uma exigência terrível que renasce da sua própria e rápida satisfação. Trémulo de pavor e de crueldade, no ato simbólico de cravar fundo o estoque na carne que se oferece com raiva e que repete devora toda a sua virilidade, trémulo assim, o homem morre, no interior esplendor do seu traje.

No leite imenso, olham-se aquele homem luzente e aquela súbita mulher despida, agora que os ligou o sangue. O quadro acabou.

Por lá ficaram toureiros e bailarinos e mortes e a preciosidade luminosa de uma lasca vermelhas, verdes, azuis, negras.

Sempre jazem toureiros – a sua profissão de matar é um ato de tremenda excitação e com ela vai o brilho repentino das pedrarias que, em trajo ideal, os cobririam. Jazem toureiros depois de mantarem e morrerem, e sempre a uma morte erótica se refere a seu corpo.

Ou o do bailarino, aquele mesmo que roda em volta da mulher, por ela chamado e recusado, num igual jogo de tourada. (Uma sombra funda e atenta, segue e colhe o seu mover). Bailarino ou toureiro, tanto faz – desde que a cena se invente num tablado ou numa arena, onde haja luzes.

O jogo erótico necessita de luzes brilhantes. Não de uma luz sensual que se continue e em sua volta seja repousado estojo, nem que clarões ou fogueiras de uma funda maldade de desfazer e refazer mundos – mas de brilhos alegres e cruéis, excitantes, logo terminados numa fúria que adiante renasça, brilhos de minérios ricos, de todas as cores cristalinas, com todas as facetas que lhe competem.

No momentâneo repouso, então, o quadro acabou.

No momentâneo repouso – o repouso é o próprio terminar do quadro, o ato breve da sua assinatura. O que lá fica é um instante do seu andamento frenético. Um instante num instantâneo assim tomado, num movimento que se vê vir de trás e continuar para a frente, que nos move ao seu encontro e nos obriga a sentir em dever de desejar o seu seguimento.

A pintura erótica introduz-se aqui. Pintura erótica é aquela que representa um ato erótico é aquela que representa uma ato erótico e excita a um ato erótico. Pintura erótica é também aquela que repele qualquer cumplicidade que não seja de pura excitação. É claro que a sua representação não pode ser anedótica, não nos pode envolver nas figuras de uma história em que se toma partido, em que nos substituímos ao herói. O erotismo é uma força que se exprime ativamente pela sua sugestão impessoal – porque, se não, tomba no exemplo e, nele, a outra coisa se reduz.

A pintura erótica tem, então, uma indisciplinada linguagem de símbolos que só na excitação de quem a vê ganha sentido – e assim o espectador, no calor das artérias próprias que tenha, aprende o que se não figura.

Os toureiros, os bailarinos, as mortes que não se figuram nos quadros de Vespeira, lá estão presentes, palpitando sangue e brilhando no cetim dos seus trajes, nas luzes múltiplas que do seu desejo se acendem, lá estão iluminadas pelas luzes do sai e da noite, do sol e a sombra (mais difícil) – por todas as luzes deste símile fálico de pamosa tourada em que as pedras preciosas invisíveis andam pelo ar tratadas com mínimas delicadezas de lapidador.

José-Augusto França (1952)

 

 

 

Corpo – Desejo – Corpo

… A infância e parte da adolescência de Vespeira são passadas no Samouco onde o pintor teve uma vida feliz e rica de experiências lúdicas. Na memória guarda a vastidão dos horizontes da planície e do Estuário do Tejo, as tradições ciganas, as garraiadas, as cegadas organizadas pelo avô paterno e os rituais religiosos como os funerais feitos à noite com música e iluminados pelos archotes usados pelos pescadores na pesca noturna.

Os três “L” com que se define refletem-se na sua obra: lúdico, lúbrico e lúcido.

A ludicidade, ligada à alegria das brincadeiras de rua da criança que encheu a memória de emoções e de liberdade. Cedo descobriu que a “felicidade do homem reside na sua imaginação”. É na infância que nasce o criador, com a construção dos brinquedos de barro, dos papagaios de papel, com o fascínio pelos sulcos e tonalidades da terra lavrada, das marcas das patas das aves na areia, do traço vertiginoso do berlinde ou da dança estonteante do peão. É na infância que inicia o desafio ao medo, a descoberta da “fascinante brincadeira dos riscos e das cores” e dos desenhos de imaginação.

Lubricidade ligada às memórias do corpo, da sensualidade tátil ao respirar arquejante do desejo, que se espelha na sua pintura de saberes, pintura noturna, aluada, onde o corpo e o desejo se materializam em metáforas de cópulas “não guardes para amanhã o amor que poder fazer hoje” um dos seus provérbios.

Lúcido e rigoroso em tudo que faz. Um fascínio pela simetria e uma necessidade feroz e primitiva de liberdade. Sempre o sério e o desafio em cada viagem revisitada com o olhar lúcido.

É um dos fundadores do Grupo Surrealista em 1947. Desenvolve um imaginário fantástico e poético de um erotismo explosivo. Poeta das cores e das formas, a sua pintura surrealista começa por um erotismo palpitante para se transformar numa tateante sensualidade epidêmica, alcançada pelo tratamento de cor líquida que dá à tela. O pintor transforma a relação entre o visual e o tátil criando um mundo sensorial que contém todos os sentidos. Neste período o ícone é a mulher ou partes dela e a sua pintura parte de inquietações vivenciais. Vespeira, o pescador de sonhos, entra na aventura surrealista porque não teme o absurdo da experiência e crê na validade de todas as experiências, porque encontra as imagens e tem prazer em as encontrar, porque as imagens o surpreendem o revelam e o destroem.

Em 1951 fica fascinado pela força erótica e flamejante do canto e da dança da bailarina cigana Carmem Amaya e pinta um quadro em sua homenagem. A partir de 1952 nova viagem, define-se na sua pintura um espaço vibrátil, em que a luz diluiu as formas que ganharam elasticidade espacial, o objeto desaparece e reina o silêncio. Mas logo redescobre a música, e sobretudo o Jazz. Escreve uma linguagem musical que uma viagem a África clarificou, onde a aventura, a ludicidade da dança, o ritmo dos corpos, a lua e os odores reativam a alegria infantil que volta nos “Pauzinhos que gostam de música”.

Os movimentos gestuais perdem amplitude e ganham simetria, surge o período biológico floral. O espaço é líquido e aveludado. A cor quente e luxuriante, tonalidades rosas, laranjas, azuis e violetas. A partir de 68 o pintor revela um interesse pela geometria e simetria orgânica.

Em 1974 “Abril alegrias mil” e a revolução surpreende o pintor que participa ativamente nas manifestações de liberdade.

Em 1984 descobre o coco duplo das Seycheles. Fascinado pelo erotismo da semente reinventa sonhos e inicia uma série de trabalhos inspirados no tema.

A semente continua a fascinar o artista e a ser fonte de inspiração. A pintura impõe-se a Vespeira como revelação de sabores e desvela-se no branco da tela, branco que fascina, provoca e amedronta. As formas e as cores corporizam-se num fluxo mágico ao sabor do desejo, desejo que evoca o sentir e obriga a exigência poéticas e plásticas que o pintor encontra na alucinação da procura. Na obra de Vespeira tudo é jogo fantástico da miragem e da imagem do sonho, num cenário de transformação e renovação, em que quanto maior o fingimento maior a autenticidade.

Mais vale a caminhada que a pousada. Diz o pintor que é mais importante o que acontece para que um quadro exista do que o próprio quadro. O acaso é o acontecer privilegiado da sua criação plástica num jogo de construções, onde as revelações são presenças de ausências que a alegria solar de Eros faz renascer.

Manuela Cruz (1999)

 

 

CATÁLOGO

 

1 – Carne Vegetal (1948) 67x53,5, óleo

2 – Ol-3-65 (1965) 130x97, óleo

3 – A Menina Lua (1949) 46x38, óleo

4 – Duas Pinturas (1949) 30x25, óleo

5 – Duas Pinturas (1949) 30x25, óleo

6 – Óleo 43 (1949) 33x24, óleo

7 – Parque de Insultos (1949) 49x38, óleo

8 – Óleo 62 (1950) 46x38, óleo

9 – A Flor de Sade (1950) 46x38, óleo

10 – Jardim Marinho (1951) 73x60, óleo

11 – Óleo 96 - Máquina (1956) 92x60, óleo

12 – Evocação de Florença (1957) 60x73, óleo

13 – Vespeira (1957) 100x62, óleo

14 – Óleo 114 (1958) 130x81, óleo

15 – Óleo 119 (1959) 97x130, óleo

16 – Natiforme (1967) 65x54, óleo

17 – Ilha-Grito-Asa (1968) 81x100, óleo

18 – Retrovisão de Simumis (1969) 81x100, óleo

19 – Ovolifulmiragem (1971) 60x73, óleo

 

A Câmara Municipal de Tomar agradece a cedência destas peças ao Museu do Chiado, à Galeria 111, à Galeria Valbom, aos colecionadores Pedro Mântua, Maria Eugénia, Fernando de Azevedo e José-Augusto França.

 

 

O artista e a obra

Marcelino Macedo Vespeira, falecido em 21 de Fevereiro de 2002, nasceu em 9 de Setembro de 1925, no Samouco (Alcochete), numa família de camponeses e pescadores artesanais, ali viveu a sua infância vindo para Lisboa em 1937 frequentar a Escola de Artes Decorativas António Arroio, donde seguiu para o curso de Arquitetura da Escola de Belas Artes, somente durante um ano, em 1942, passando a dedicar-se à publicidade gráfica que então dava modo de vida a muitos artistas. Ao mesmo tempo, porém, entrou em outros convívios artísticos e em 1943 expôs pela primeira vez, com Fernando de Azevedo e Júlio Pomar, entre outros, e realizou desenhos expressionistas, de cariz neorrealista expostos na I Exposição Geral de Artes Plásticas em 1946, e no ano seguinte, na II. Fez então parte da Comissão Artística do MUD e do coro de Fernando Lopes-Graça. Em 1947, porém, com F. Azevedo, A. Pedro, J. A. França, Cesariny, Moniz Pereira, O´Neill e outros, participou na Fundação do Grupo Surrealista de Lisboa, e na sua exposição de Janeiro de 1949.

Voltou a expor com F. Azevedo e mais Fernando Lemos em Janeiro de 1952, na Casa Jalco, numa manifestação da maior importância para a evolução da história da pintura portuguesa a meio do século.

Em 1954 foi preterido no Prémio de Jovem Pintura da Galeria de Março, mas ali participou ainda no I Salão de Arte Abstrata. No ano seguinte, entusiasmado pelo Jazz, obteve o prémio de uma exposição organizada pelo Hot Club. Entre 1956 e 61 participou nas I e II exposições da Fundação Gulbenkian, nos I e II salões de Arte Moderna da SNBA, no Salão dos Artistas de Hoje e na exposição de “50 Artistas Independentes”.

Em 1961 e 62 realizou exposições individuais na galeria do “Diário de Notícias” no Chiado e na Galeria 111, grupos de guaches, em 1966 e 70. Um ano depois foi selecionado para o grupo de onze pintores que decoraram de novo “A Brasileira do Chiado” (quadro “Forma Abstrata” que lá continua visível). Em 1974 participou no movimento de Dinamização Cultural do MFA, produzindo o seu famoso logotipo e vários cartazes, e foi um dos 48 pintores do grande mural nesse ano realizado em Belém.

Esteve bem representado nas exposições dos “Anos 40” (FCG, 1982, programada por J. A. França) e “Anos 60” (Beja e SNBA, org. por R. M. Gonçalves, 1995).

Sofrendo uma doença grave em 1989, diminuiu a sua atividade mas desde 1996 teve exposições retrospetivas em V. F. Xira, Montijo (cuja Câmara Municipal criara em 1985 o prémio Vespeira), Amada (onde em 1957 obtivera o prémio Columbano na exposição dos Capuchos), etc., culminando em 2000 com uma exposição de consagração do Museu do Chiado – que lhe valeu o Prémio Nacional de Artes Plásticas da AICA.

 

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