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Imagem da Capa: Fernando Lemos/ autorretrato, 1949-52

Janeiro - Março 2006

Fernando Lemos 24ª Exposição Galeria dos Paços do Concelho

F. Lemos é, sem dúvida, a maior força criadora da sua geração (portuguesa) - para além de desistências, de amarguras, de habilidades, de comercialismos. (...)

F. Lemos é, sem dúvida, a maior força criadora da sua geração (portuguesa) - para além de desistências, de amarguras, de habilidades, de comercialismos. O seu desenho situou-se internacionalmente, pela originalidade da problemática criada; a sua pintura, partindo dele, atingiu hoje uma definição formal importante, no domínio de uma semiologia ao mesmo tempo grave e irónica na sua carga semântica.

Os enormes signos que nos propõe jogam simultaneamente no plano e no espaço, assumindo uma materialidade concreta, em termos de modelação simulada. As suas tensões internas definem um sistema de contradição dinâmico que constitui o significante necessário numa operação “aberta”.

José-Augusto França, 1973

 

 

Entre o sujeito que fotografa e o objeto fotografado existe um equívoco que é a máquina fotográfica. Leis de uma rigorosa ótica dão-lhe um papel de passivo reprodutor do que enquadra. Mas aí começa o engano – e logo nas leis, cujo rigor tem complicações matemáticas que deformam as perspetivas do real. Daí que não seja passivo mas ativo o aparelho. Ativo por uma fatalidade física que o acaso, a ela sujeito também, inesperadamente prolonga. Depois, não é o aparelho eu enquadra – mas o fotógrafo. O real é-lhe proporcionado num recorte voluntário, abstraindo do circunstante. Depois, ainda, não será grande especulação lembrar que a lente que, no fim de contas, separa o objeto do sujeito, para ambos os lados está aberta, e ambas as partes provoca numa luta de que sai a fotografia. Se o sujeito olha o objeto, o objeto também o olha. É procurado, mas nessa altura reflete quem o busca. Há quem escolha vaquinhas de pastar ou troncos de mulher – e no que escolhe se revela. O equívoco da máquina é completo aqui. Toda a máquina, por condicionada, tem uma estupidez dos objetos sem liberdade.

Pode resolver algarismos, mas não digere o engano de uma engrenagem que não ocorra à obrigação da mecânica. Um relógio que não ande acertado é uma máquina inútil porque a utilidade é o único critério do seu apreço. A câmara fotográfica, porém, deforma, altera, recompõe – e nisso, desejado ou involuntário, é estimada. Máquina é então, nome que por equívoco se lhe atribui.

O retrato fotográfico, tomando a fração de segundo de um movimento humano, recusando a pose de semanas, despindo-lhe consequentemente as galas que são produto de uma lentidão social, retirou ao retrato uma função mítica que a pintura lhe dera.

E retirou-lha ao mesmo tempo que a própria pintura o fez, ao mesmo tempo de idade, poder-se-ia dizer, se estabelecêssemos proporções de velocidade no caminhar dos anos.

Mas o instante fugidio em que umas feições são apanhadas, pode complicar-se com «acidentes» técnicos – e a desfocagem, a sobreposição, mais o que a imaginação do fotógrafo inventar, ajudam o retrato, alargam-se ao plano de linguagem fotográfica generalizada.

Estes «acidentes» são características de um grande movimento fotográfico que em 1950 se iniciou, na Alemanha, animado pelo Dr. Otto Steinert. Um álbum recentemente publicado («Subjektive Fotografie») dobre a exposição de Junho de 1951 em Sarrebruck, que foi a sua primeira apresentação pública, ilustra a conceção da «Fotografia Subjetiva», a caminho de um novo estilo em que se englobam as invenções desse grande artista que é Man Ray, todo o seu sentido do maravilhoso que o surrealismo abriu à imaginação universal nos anos 20.

Afinal, como em toda a criação moderna, um livre acaso, uma dignidade da imaginação. Um movimento tal que, lembro-me eu, poderia fazer chamar «subjetiva» à lente do aparelho, deixando para a dos outros fotógrafos a pobre designação de «objetiva», que o séc. XIX lhe deu. Fotografia assim, vem-na fazendo, desde 1949, o pintor Fernando Lemos, e pela primeira vez a expôs em Janeiro de 52.

José-Augusto França,

Comércio do Porto, 10 de Março de 1953

 

 

Lemos dedicou-se à fotografia com uma intensidade nova nesta arte que sobretudo era então domínio, em Portugal, de amadores passivos. Uma subjetividade aguda guiou o artista na fixação de muitos retratos de intelectuais («”Acreditávamos uns nos outros e vivíamos com se Portugal estivesse dividido entre “nós” e “eles”», F. Lemos, 2002), e em composições de estranha sensualidade, misteriosa e carnal, de nus e objetos diversos de que o surrealismo assim se apropriava, nesta consequência imediata do seu discurso.

José-Augusto França,

História de Arte em Portugal – O Modernismo, 2004

 

 

Nasci na Rua do Sol ao Rato, em Lisboa em 1926. Fui para o Brasil em 1952. Fui estudante, serralheiro, marceneiro, estofador, impressor de litografia, desenhador, publicitário, professor, pintor, fotógrafo, tocador de gaita, emigrante, exilado, diretor de museu, assessor de ministros, pesquisador, jornalista, poeta, júri de concursos, conselheiro de pinacotecas, comissário de eventos internacionais, designer de feiras industriais, cenógrafo, pai de filhos, bolseiro, e tenho duas pátrias, uma que me fez e outra que ajudo a fazer. Como se vê, sou mais um português à procura de coisa melhor.

Sou um homem da água, dos reflexos e da reflexão,

E os dois estão muito ligados à pintura e à fotografia.

Fernando Lemos

 

 

Fernando Lemos intervém com a disposição desconcertante e admirável dum contraponto de positivos-negativos que desconvencionalisa não só lugares que os objetos habitam, mas também aqueles a que pertence a luz e a sombra – as quais ficam de tal modo fazendo parte do de-dentro das coisas e deixam de andar-lhe por cima, como habitualmente. Aos seres, aos objetos e aos lugares, trocam-se-lhes as categorias entre si, não são para eles mais se fugirem antes para melhor e de novo se encontrarem, porque assim o quer o poeta.

… Lemos não precisou da máquina fotográfica para acreditar na realidade, o que quer dizer que começou desde o princípio a servir-se dela melhor do que se dela se servisse só para ter uma certeza sobre o sentido das coisas, que não fosse já da sua intimidade. Certeza que lhe veio sem dúvida daquela predisposição e hábito de retenção visual, que tanto o amor das formas como a constante invenção de meios para as surpreender exercitou no pintor que ele também é. Daqui que tivesse seguido pelo caminho comum a todos os criadores – o de inventar uma linguagem para uso próprio dentro de outra já demasiado comprometida com os seus próprios sucessos.

Fernando de Azevedo, 1952

 

 

Fotografia (como velocidade reguladora do espontâneo) e memória (constante detalhamento dos segredos) são a massa de garantia para alta definição de um ato, um gesto e/ou um pensamento. Mas para ao retrato de uma pessoa ou objeto, é necessário ter-se no estudo do flagrante uma denúncia implícita que lacre em imagem a prova desejada e decisiva para a sobrevivência – do imediato ao definitivo. Para que a razão de ser e estas dessa pessoa ou objeto nasça definida como o signo lavrado em múltiplas e várias particularidades reveladas, personalizadas por modos de vida, quotidianos a testemunhar – isto é, traços fisionómicos a exaltar que ultrapassem sem esboço nem retoque, o instantâneo coletado pela luz autenticada da gravação fotográfica.

Esta galeria de figuras que nos anos 1950 habitavam um espaço reduzido no país dividido pela ditadura é um registo amoroso de permanente resistência oposicionista ao Portugal oficial, de como seus alinhados se defendiam do constrangimento e desânimo, achados convenientes pelo governo para excluí-los do direito à cidadania, acesso à docência universitária, ao desenvolvimento das artes. Procedimento de combate em criatividade elaborando suas obras e mitos próprios, no dia-a-dia, inventando a liberdade com a consciência possível da inter-intimidade ainda que prevenida e vigiada de perto pela censura.

Cúmplices afetuosos todos posavam com a mesma liberdade concedida ao autor na estética usada, comprometida que estava com o surrealismo experimental, aliás especialista na invenção poética – uma travessura amais de instrumento para afronta aos conservadores de plantão.

Hoje se pode avaliar mais profundamente quem são os retratados, dando-lhes magnífica presença editada para uma justa leitura da história portuguesa da última metade do Séc. XX retratos de quem significou.

Fernando Lemos, 2000

 

 

 

CATÁLOGO

 

1.       Fernando Lemos / Auto-Retrato, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

2.       José-Augusto França / Repouso da História, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

3.       Fernando Azevedo / Ver para Fazer, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

4.       António Pedro da Costa / Brincar com o Fogo, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

5.       Vespeira Figurativo / Aula do Erostismo, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

6.         Reunião de Directoria / F. Lemos /  Vespeira/ Manoel Correia / F. de Azevedo / Carlos Ribeiro, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

7.       Jorge de Sena / Meditação Arregaçada, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

8.       Carlos Wallenstein / A Fala do Gesto, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

9.       Natacha França/ Quieta,1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

10.   Intimidade do Chiado, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

11.   Pôr do Sol e Alvorada, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

12.   Palavras lava-os o Vento – Roupas leva-as o Tempo, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

13.   Coisas do Vidro, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

14.   Gesto Emoldurado, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

15.   Luz Desarmada, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

16.   A Sensualidade que Avança, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

17.   Nu Lento, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

18.   Movimento Desembaraçado, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

19.   Hospital de Bonecas, 1949-52, Impressão fotográfica s/ papel, 47 x 47 cm

 

 

O ARTISTA E A OBRA

Fernando Lemos nasceu em Lisboa, em Maio de 1926. Cursou litografia e pintura na Escola de Artes Decorativas António Arroio e pintura na Sociedade Nacional de Belas Artes, expondo pela primeira vez em 1946 na I Geral de Artes Plásticas. Em 1953 emigrou para o Brasil e fixou residência em S. Paulo. Naturalizado brasileiro em 1960, é no Brasil que tem desenvolvido a sua atividade de pintor, desenhador, fotógrafo, designer gráfico, ilustrador, gravador e poeta. Como desenhador obteve o Prémio da Bienal de S. Paulo de 1957 e teve sala individual na Bienal de 1965. Expôs pela última vez pintura em Portugal na Galeria 111, em 1997.

Procurando dar expressão plástica ao universo surrealista, entre 1949 e 1952, Fernando Lemos dedica-se quase exclusivamente à fotografia. Estudos de nus e fotografias de miniaturas, mas sobretudo retratos da jovem cultura portuguesa protagonista da oposição ao regime, dão forma ao carácter inovador da sua dupla exposição fotográfica.

No final da década de 60 emprestou a sua criatividade ao cinema com a direção fotográfica de “Compasso de Espera”, a longa-metragem realizada por Antunes Filho.

Da atividade especificamente fotográfica destacam-se:

2001, “Prémio Nacional de Fotografia”, atribuído pelo Centro Português de Fotografia; 2006 “Prémio Especial de Fotografia de Porto Seguro”.

Exposições Individuais: 1952, “Fotografias de Várias Coisas” (Galeria Março – Lisboa); 1953, “Fotografias” (Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de S. Paulo); 1992, “Fernando Lemos” – integrada no Mois de la Photo (Centro Cultural Português da F.C.G. – Paris.); 1994, “À Sombra da Luz” (CAM-FCG – Lisboa); 1998, “Fernando Lemos: fotografien” (Handelskammer – Hamburgo) e “Photographies” (Galerie Municipale du Chateau d’Eau – Toulouse); 2004 – 2005, “À Sombra da Luz, À Luz da Sombra (Pinacoteca do Estado – S. Paulo, e Museu Nacional de Belas Artes – Rio Janeiro); 2005, “Fernando Lemos e o Surrealismo” (Coleção Berardo – Sintra Museu de Arte Moderna e Centro das Artes Casa das Mudas – Funchal); 2006, “Realidade não é Tempo” (FNAC – S. Paulo) e “Exposição de Fotografias” (Galeria Tempo – Rio de Janeiro).

Exposições Coletivas: 1952, “Azevedo, Lemos e Vespeira” (Casa Jalco – Lisboa); 1977, “A fotografia na Arte Moderna Portuguesa” (Centro de Arte Contemporânea – Porto); 1982, “Refotos dos Anos 40” (SNBA – Lisboa); 1983, “Le Surrealisme Portugais” (Galerie de I’UQAM – Montreal); 1994, “O Rosto da Máscara” (CCB – Lisboa); 2001 – 2002, “Surrealismo em Portugal: 1934/1952” (Museu E. e I. de Arte Contemporânea – Badajoz, Museu do Chiado – Lisboa e Circulo de Bellas Artes – Madrid); 2005, “Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira” e “Fotografia na Colecção Pirelli” (Museu de Arte de S. Paulo); 2006, “Clube de Colecionadores de Fotografias” (Museu de Arte Moderna – S. Paulo);

Bibliografia/Vídeos: Fernando Lemos – “Autoportrait”. Montpelier: Editions Fata Morgana, 1998; Fernando Lemos – “Retratos de Quem? Fotografia, Portugal, Anos 50”, Lisboa: Instituto Camões, 2000; “Retrato de Fernando Lemos”, realização de Olívio Tavares de Araújo, CPF, 2001; “Fernando Lemos atrás da Imagem”, realização de Guilherme Coelho, 2005; “Fotógrafos na Pinacoteca do Estado de S. Paulo”, realização de Camila e Renato Suzuki, 2005.

Entrevistas recentes em Portugal: “Público” (2/01/2002); “Por Outro Lado” – RTP2 (2005); Universidade Aberta (2005); “Única – Expresso” (7/01/2006).

Está representado no Núcleo de Arte Contemporânea do Museu Municipal de Tomar com cinco pinturas, dois desenhos e dez fotografias.

 

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