Com o objetivo de melhorar os nossos serviços e a experiência de navegação, informamos que utilizamos cookies.
Aceitar
Recusar
“Põe quanto és no mínimo que fazes” 1966
Eurico em sua demanda
Eurico é um caso único no país onde cada vez menos os há, em produções artísticas que se seguem e cheiram onde não devem, buscando segurança de vida durante quatro ou cinco anos; depois, essa vida se muda conforme os ventos promocionais, e assim sucessivamente, em pobreza de hábitos de imaginação e profissão. Sejam imagens sejam objetos e instalações, um já visto nos vê – o “está visto” do calão antigo para sítios similares, a que Stendhal deu nome, dando também categoria biliosa-melancólica aos Portugueses…
Não assim o Eurico – ou visto dele, com os anos que tem, vem de uma revelação que se lhe deu, absoluta e certa como tais fenómenos são e têm que ser para o próprio, que nisso serenamente fica. Como os sages de outras partes, sem relatividade, sequer de longas durações da história, quanto mais das curtas que as modas trazem e levam, e os “marchands” e alguns críticos de boa vontade em magazines de má-fé. A fé de Eurico, é boa e dele, com os movimentos que pratica, de mão, braço e olhar, no gesto certo que lhe convém, ou conveio e convirá. Quem não o quiser, que vá a outra loja – mas nesta é capaz de ficar mais bem servido por autenticidade do que se lhe oferece… Por isso, o pintor vê as lojas dos outros passar, continuando a sua imóvel viagem pelas telas e pelos papéis, numa beleza sequer buscada na carícia do pincel chinês.
Não é chinês o pintor? Que culpa a dele, ou a nossa? Encontrou ele o gesto em França, trabalhou-o com Degottex? Assim foi e também Degottex é um caso único na arte de Paris, certo e sabido na história dela, desde os anos 50, sem que, por tolice lhe façam perguntas da China. Aliás chineses somo-lo todos, a certas horas ou a certa idade, mas matamos sempre, ocidentalmente, o mandarim ilusório e perene, e disso morremos depois, em lufa-lufa de variadas culturas…
Eurico não, e por isso o invejo eu, e entendo, no silêncio puro a que se entrega – tratando de meninos por ofício de ensinar. Ensino de coisas outras, sem automóveis, bê-dês, tê-vês ou computadores de dedo alçado, que a mão é soberana ao homem, por dentro dele, em escrita tanta. “Je médite avec ma main”; morreu há dias quem o disse, e não era aliás Degottex.
Esses meninos, Eurico os pintou, ao começo da sua vida, quando em 1954, eu o levei a expor, pela primeira vez, numa chamada “Galeria da Março”, em Lisboa. Meninos ou fantasmas de meninos, elfos já, sorridentes, olhando o mundo invisível. E eles olham ainda, decerto, quando os quadros de então são dados retrospetivamente a ver, como referências. Olham eles por inocência, ou doce ironia que quarenta anos acrescentavam na vida de todos os outros. (Aqui uma frase interrogativa ilegível, no manuscrito; passo adiante:) Ora adeus, o real deles era outro e sempre. (Subitamente sou levado a ler o que há pouco não lia, e é esta a interrogação: Surrealismo? Aliás, apresentou Degottex falando da sua “quête d’un sens éternel”). Um real caligráfico, como se diz em crítica de arte, e igual, de quadro em quadro, por não poder ser diferente daquilo que é. Ou seja, que é o pintor, na profundidade de si, voluptuosa e grave, expressiva e por si falante, deixando os outros fazer o que fazer, por informação feita, na fundamental separação que a vida põe, entre um e outro verbo. Eurico é do verbo ser, astrologicamente, sem bílis nem melancolia, nem humores nem pressas para os silêncios da vida. Retrato de um pintor assim entre muitos outros (melhor, pior…) que os rumores cozem em iludidos lucros – que são de crónica mas não serão de história. Esta, que só realmente ao futuro o Padre Vieira creditava, em longa, longuíssima estrutura, aos fiéis da própria, ignota, humílima, demandada verdade assiste – por debaixo ou por de cima de outras heracliteanamente igualadas, pode estar Eurico descansado como está, dono feito da mão gestual que tem. E prevejo aqui o quadro enorme, inenarrável, que à volta do mundo um dia (não) pintará, infinitivo como todos os maiores quadros devem ser, em gesto tamanho…
José-Augusto França (1994)
Dádá-zen / Pintura-Escrita (1963-2000)
Surrealista desde 1949, nunca deixei de praticar o automatismo psíquico puro, que assumo até às suas mais extremas consequências.
Através do improviso, as minhas figuras foram dando lugar a simples sinais gráficos, ágeis caligrafias abstratas, executadas fora de qualquer motricidade imposta do exterior, ou seja, uma pintura de sinais, derivada do gestualismo, tão depurada quanto possível. A execução gestual, rápida, direta e sem retoque, confronta-se com formas arquetípicas do inconsciente coletivo, tão defendido por Jung, que demonstrou haver uma grande conformidade entre o movimento das mãos e o próprio estado de espírito.
Por seu turno, André Breton declarou que a finalidade do surrealismo é a reabilitação de todas as capacidades psíquicas. Os dados imediatos do inconsciente e a intervenção do acaso foram explorados por mim na pintura-escrita que assumo como um ritual, pesquisando relações entre um comportamento vitalista Dádá e a sageza do Budismo Zen.
Se, no início dos anos 60, as caligrafias a tinta da china preta evidenciam o vazio, representado pela nudez branca do papel, nas despinturas, descolagens e desdobragens que realizo posteriormente, o suporte é redescoberto na sua nudez original como campo residual da intervenção da escrita, em função do acaso.
Chamo a atenção para a importância do prefixo des no desenvolvimento da minha obra. Segundo Zen, é pela negação do sinal que se cria um novo sinal. Assim, ao despintar, que consiste em tirar a cor, ao descolar, que consiste em retirar o que foi colado, e ao desdobrar, que consiste em ver o que fica, através de um processo psicologicamente análogo ao da “decalcomania”, é o suporte que é revalorizado na sua globalidade, como amplo campo de registro gestual. O primado do suporte e a meditação visual dos processos de registo permitiram-me redescobrir, intuitivamente, na minha pintura de signos, o sentido do arabesco ibérico e das tradições artesanais mediterrânicas, onde o branco e o preto valem como cores e não como luz e sombra.
Ao aprofundar o automatismo psíquico, através do gestualismo e da caligrafia espontânea, aproximei-me do espírito Zen de uma arte direta, sem correção, nem retoque, que, quanto a mim, encontra afinidades com a atitude vitalista Dádá. Uma conceção demasiado limitada do automatismo psíquico puro tem levado alguns críticos, literatos e muitos artistas a não compreender o surrealismo fora do âmbito figurativo, quando André Breton encontrara já em 1955, a comprovação do automatismo psíquico numa pintura de signos, tão rigorosa e puramente abstrata como a de Jean Degottex, com quem trabalhei em Paris, em 1966-67.
A meditação que proporcionou o meu encontro pessoal com Degottex intensificou a minha crença no surrealismo abstrato. Pela mesma razão, vim a prefaciar uma exposição de Henri Michaux, em Lisboa, em 1972. Curiosamente, Michaux e Degottex também aderiram ao espírito Zen, bem como outros artistas que admiro como Masson, Miró, Tápies, Ives Klein e Rothko.
O que importa, escrevia Breton, é não apenas o efeito a conseguir, mas “a qualidade, a pureza dos meios” utilizados. E, em 1962, insistia: “A pintura atual, denomine-se ela action-painting, pintura gestual, informal, etc., provém, antes de tudo, do automatismo, deriva da promoção do automatismo pelo surrealismo”. “A escrita automática não poderia ser um fim em si mesmo. Quando muito, procura-se obtê-la tão pura quanto possível e, a partir daí, é fácil reconstituir a série de operações mentais que envolve”. (…) “Não se está longe do tiro ao arco e do tomar conta das vacas, na filosofia Zen”.
“É de olhos vendados que o grande atirador alveja” – António Maria Lisboa.
“Nada teu exagera ou exclui. Põe quanto és no mínimo que fazes” – Ricardo Reis.
A minha pintura mais recente reafirma-se em função da textura e de outras características específicas do suporte, onde, por vezes, se reintegra a colagem como meio de autoprovocação da capacidade expressiva de uma linguagem, que condensa em si a experiencia do cheio e do vazio, da mancha e do traço vertiginoso. É uma pintura-escrita livre e descomplexada, inteiramente inventada no momento de execução.
Eurico Gonçalves (2000)
CATÁLOGO
1 – Caligrafia, (1963) 43x61, Pincel e tinta da china s/papel.
2 – Caligrafia, (1963) 43x61, Tubo de tinta da china s/papel.
3 – Caligrafia, (1963) 43x61, Lâmina e tinta da china s/papel.
4 – Caligrafia, (1963) 43x61, Espátula de borracha e tinta da china s/papel.
5 – Cela s’appele l’aurore – Homenagem a L. Buñuel, (14-03-1965) 70x103, Trapo e tinta da china s/papel.
6 – Põe quanto és no mínimo que fazes, (1966) 50x66, Acrílico e pastel d’óleo s/ papel colado em madeira.
7 – Sol Negro – Homenagem a L. Buñuel, (13-04-1971/ 16-02-2000) 60x80, Pintura-Colagem.
8 – Satori, (24-06-1979 - B) 103x70, Tinta da china s/papel.
9 – Mandala, (21-04-1981 - B) 86x61, Acrílico e pastel d’óleo s/papel.
10 – Dissecação – Homenagem a L. Buñuel, (26-04-1981 - D) 86x61, Decalcomania.
11 – Dádá-Zen, (26-04-1981 - F) 86x61, Tinta da china s/papel.
12 – Emergência, (05-02-1990 - A) 100x70, Acrílico e pastel d’óleo s/ fundo negro.
13 – Ocultação, (30-08-1990 - A) 86x61, Acrílico e pastel d’óleo s/papel.
14 – Percussão, (08-10-1991 - A) 92x64, Acrílico s/tela colada em madeira.
15 – Pintura-Escrita-Colagem, (05-10-1994 - A) 52x75, Acrílico e pastel s/ papel colado em tela.
16 – A pirâmide existe, (12-08-1997 - A) 65x81, Pintura-Colagem s/tela.
17 – Rosa Salmão, (27-19-1998 - A) 100x60, Acrílico e pastel d’óleo s/papel.
18 – Evanescências, (15-09-2000) 60x90, Acrílico e pastel d’óleo s/tela.
O artista e a obra
Eurico Gonçalves nasceu em 1932, em Abragão, Penafiel.
Pintor, professor e crítico de arte, membro da A. I. C. A. Surrealista desde 1949. Em 1950/51, escreveu e ilustrou narrativas de sonhos, textos automáticos e poemas, compilados em quatro cadernos manuscritos, hoje parcialmente recuperados numa edição de luxo; aí, palavras, desenhos, colagens e guaches fundem-se numa só forma de expressão. Em alguns aspectos, a sua pintura aproxima-se já do Neo-Figurativo. Manifestando-se através do improviso, as suas figuras foram dando lugar a simples sinais gráficos, ágeis caligrafias abstractas, derivadas do Gestualismo, com resultados extremamente depurados. A sua execução gestual rápida, mas serena, confronta-se com formas arquetípicas do Inconsciente Colectivo, tão defendido por Jung, que demonstrou haver uma grande conformidade entre o movimento impulsivo das mãos e o próprio estado de espírito. Por seu turno, André Breton declarou que a finalidade do Surrealismo é a reabilitação de todas as capacidades psíquicas.
Desde 1964, Eurico Gonçalves tem publicado artigos de divulgação de Arte Contemporânea e estudos sobre a Expressão Livre da Criança, o Dadaismo, o “Zen” e a Pintura-Escrita. Em 1966/67, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, onde trabalhou com o pintor francês Jean Degottex. Em 1972, prefaciou uma importante exposição de pintura de Henri Michaux, na Galeria S. Mamede, em Lisboa. Desde 1972, é membro dos corpos directivos da S. N. B. A.
Expondo desde 1954, participou em numerosas colectivas, designadamente, na Bienal Internacional de Desenho “LIS`79”; no Festival Internacional de Pintura, em Cagnes-sur-Mer (França), 1980; na XVII Bienal Internacional de S. Paulo (Brasil), 1983; em “Um Rosto para Fernando Pessoa”, C.A.M./F. Gulbenkian, 1985; em “Le XX.ème au Portugal”, Bruxelas, 1986; na III Exposição Gulbenkian, 1986; em “A Teatralidade na Pintura Portuguesa”, F. Gulbenkian, 1987; na “Arte Portuguesa Contemporânea”, Osnabruck, Alemanha, 1992; na “Primeira Exposição do Surrealismo ou Não”, na Galeria S. Mamede, Lisboa, 1994; e em “Desenhos dos Surrealistas em Portugal”, no Museu Nacional Soares dos Reis, Porto, 1999.
Em 1971, foi distinguido com uma Menção Honrosa do Prémio da Crítica de Arte Portuguesa, subsidiado pela SoQuil. Em 1998, foi-lhe atribuído o prémio de pintura Almada Negreiros, subsidiado pela Fundação Cultural Mapfre Vida.
Está representado no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, no Museu Amadeo de Souza-Cardoso, em Amarante, nos Museus de Castelo Branco e de Estremoz, na Fundação Cupertino de Miranda – Famalicão, na Culturgest e em muitas Colecções Particulares. Autor dos livros; “A Pintura das Crianças e Nós – Pais, Professores e Educadores” Porto Editora, 1976; “A Arte Descobre a Criança” e “A Criança Descobre a Arte” – 4 volumes – Raiz Editora, 1991-93; “Narrativas de Sonhos e Textos Automáticos” – Edições António Prates / Centro Português de Serigrafia, 1995. Ilustrou “Canções de Beber”, F. Pessoas, Ed. Tiragem, 1997. Realizou a sua primeira exposição individual, prefaciada por Mário Cesariny, em 1954 em Lisboa, na Galeria de Março, dirigida por José-Augusto França que, quarenta e seis anos depois, o convida a expor em Tomar, no ano de 2000. Prefaciaram exposições suas personalidades ligadas ao Surrealismo como Mário Cesariny (em 1954 e 1970), Cruzeiro Seixas (em 1983), José-Augusto França (em 1994 e 2000) e Ernesto Sampaio (em 1999), os poetas visuais Ana Hatherly (em 1968) e Ernesto de Melo e Castro (em 1978), os críticos de arte Fernando Pernes (1964 e 1968), Sílvia Chicó (em 1878, 1980, 1983 e 1994), Fernando António Baptista Pereira (em 1988), Joaquim Matos Chaves (em 1989 e 1992), Pedro Henriques (em 1999) e o cineasta Lauro António (em 2000), que reconhecem a influência do Surrealismo e do “espírito Zen” na obra de Eurico Gonçalves.
Gosto (0)