Gestão de Cookies

Com o objetivo de melhorar os nossos serviços e a experiência de navegação, informamos que utilizamos cookies.

Aceitar

Recusar

Imagem da Capa: Fernando Pessoa – ele mesmo: realidades contraditórias, 1978

Abril – Junho 2009

Costa Pinheiro 33ª Exposição Galeria dos Paços do Concelho

Em todo este meu debruçar-me sobre o “espaço poético” de Fernando Pessoa há uma espécie de “arqueologia”, inventada pela minha imaginação de português exilado, (...)

Em todo este meu debruçar-me sobre o “espaço poético” de Fernando Pessoa há uma espécie de “arqueologia”, inventada pela minha imaginação de português exilado, que me atrevo a colocar na vida-real do poeta (a sua chávena de café, a sua boquilha, a sua caneta, os seus óculos, o seu chapéu, a sua mesa e a sua cadeira, o seu maço de cigarros, as “suas-minhas” janelas-paisagens, o “seu-meu-nosso” mar e céu, as “suas-minhas-nossas” gaivotas, os “seus-meus-nossos” barcos…).

Não pretendi pintar retratos num sentido tradicional. As figuras centrais têm a rigidez da estatuária, mas há pormenores movimentados, uma compartimentação do espaço e um diálogo das cores que lhes imprime um outro carácter plástico. Se quisermos chamar retratos a estas figuras, não esqueçamos que são imaginárias e não precisam de nenhuma documentação histórica. Isto é um privilégio do artista, cuja liberdade de imaginação coincide por vezes com a imaginação popular.

Costa Pinheiro  

  

 

Fernando Pessoa não é - e como poderia sê-lo, entre a chávena de café ausente e a ausência das gaivotas do cais donde nunca parte? Toda a maresia dos dias ficou boiando nos óculos que são a realidade única do poeta sem rosto necessário por suficiência mágica do próprio existir. Fingidor do deveras sentido, ele eclipsa-se, só chapéu óculos mãos tampo de mesa na espera do nunca precisar de partir como todos os seus leitores de partir precisam, através dele e sem afinal jamais lhe entenderem o sonho não sonhado. Daí que a figura do poeta quando a tem se multiplique por três ou mais; daí que quando nunca a tem seja a chávena e todo o resto, de imagem em imagem, dissociadas até à janela (fechada) com árvores sem salão de Outono. Daí que tudo seja um caso de ter não ter “visage”, por demais todas ter. Daí que.

Daí que Fernando Pessoa não seja: “personne” quer dizer ninguém numa súbita frase célebre desencadeadora, pandora, da desgraça maior de ninguém mais poder existir. Como nós, como nós – nele escondidos, como pendurados andamos num outro poeta antigo ardido de fogo sem se ver.

Tudo lançou de si Fernando Pessoa – até à realidade máxima de assim ser sozinhamente português, no manguito arguto da sua mensagem. Enquanto cigarrinhos e cafezinho e caneta sobre a mesa que nos espera. Sem necessidade do encontro esquisito de qualquer coisa com não sei que mais, na anatomia de cada qual que Costa Pinheiro ilude em óculos mãos pousadas paquete navegante e gaivota voadora. No lugar onde nada.

No saber onde tudo. Na morte ironicamente recebida a tantos copos por dia – itinerário de angústia lusitanamente certa entre fantasmas evocados, rindo verso a verso por interpostos nomes. Heterónimos, ao que se diz. 

… … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … … …

Costa Pinheiro (1932-), o único do grupo KWY que resistiu na emigração, instalado profissionalmente em Munique (mas com permanente e insistente inspiração portuguesa), inventou, em 1964-1966, uma série de figuras de reis, príncipes e princesas de Portugal, remitificando-as com um prazer lúdico insólito.

São cartas de jogar que se dispõem num discurso cheio de referências e de alusões históricas, ultrapassando-as sempre nos seus sinais mágicos para que uma ideia da pátria distante se forme – “par coeur”, como quase meio século atrás dissera Almada. O rei D. Sebastião é a figura mais amada, pela carga sentimental que traz – e um coração não pode deixar de se registar na palma da mão fatídica (exp. CAM, Lisboa, 1989) … Estamos dentro de uma fundamental contribuição nacional para uma narração iconológica absurda que se processou, em variados termos pop, pelos anos 60. Intitulando Imagination & Ironie o livro que publicou na Alemanha em 1970, Costa Pinheiro, «imaginativman», passou depois a objectos de brinquedo este tipo de imagens, pondo-as a funcionar numa espécie de urbanismo metafórico que minuciosamente criou num «projekt-art»…

Em fins desses anos 70, foi, de novo, a prática pictórica então consagrada à figura de Fernando Pessoa, diversamente instituída e personalizada até pelo próprio pintor (exp. CAM, Lisboa, 1985). Pessoa foi, assim, para Costa Pinheiro, um mito nacional, ao nível dos seus reis dos anos 60, mas o diálogo estabelecido tem uma pressuposição mortal que representa o próprio destino poético da pátria obsessivamente simbolizada numa pintura lisa, de simplificada estilização de desenho e de colorido. Com estas pinturas, o artista mais uma vez registou um quadro de reflexão mitológica que lhe dá o lugar historicamente merecido no último terço do século – com a devida nostalgia de emigrante…O prémio AICA de 1982 foi-lhe atribuído necessariamente.                                                                           

José-Augusto França, 1979 e 2004

 

 

 

Nasceu no Alentejo, perto da fronteira com Espanha. Antes de partir para Paris e Munique, apareceu no meio cultural público lisboeta, com pinturas líricas: pequenos guaches diluídos, com fundos de luminosidade crepuscular, a que não eram alheios o espírito e o método de Paul Klee.

Cerca de 1960, realizou pinturas gestuais, fortemente dramáticas através de contrastes dos diversos elementos pictóricos: traçados rápidos, improvisos de curvas indefinidas e de malhas abertas, densas ou expansivas, sem se fecharem, fundindo-se ou destacando-se das manchas informes do fundo. Deste magma convulsionado surgiu depois a possibilidade de invenção de figuras puras, a que chamou «bichos mitológicos» e «paisagens absurdas». Porém, na prática do desenho à pena e na técnica indirecta da arte da gravura, Costa Pinheiro tratou o elemento-figura de modo voluntarioso e sistemático, conjugando os géneros: «paisagens, naturezas-mortas, figuras», onde as linhas de contorno, as texturas regradas e o preto-branco serviam concepções estéticas abstraccionistas e criavam uma nova figuração. Afirmando-se em estruturas geométricas ou emblematizando objetos, animais e homens, as pequenas figuras foram ocupando o fundo liso e organizaram as composições, determinando a recuperação dos simbolismos da verticalidade, da junção e dos espaçamentos entre elas.

As personagens que começaram a surgir mais insistentemente eram guerreiros e touros, produtos de reminiscências ibéricas. Estas figuras, não sendo inicialmente predeterminadas, manifestavam as nostalgias do emigrante, recriadas poeticamente. Costa Pinheiro passou a explorar estes e outros dados do seu subconsciente. Adoptou como temática os mitos portugueses enraizados na História, bem ou mal compreendida, apenas lhe interessando o modo de a sentir, como nas lendas, onde se revela o subconsciente colectivo. Primeiro, o desastre militar de Alcácer-Quibir foi evocado em agitadas composições de figuras grotescas, armaduras abandonadas, canhões com rodas. Portugal perdeu a independência. D. Sebastião foi «retratado» por Costa Pinheiro nesta auréola mítica: menino-rei de perfil determinado, olhando para além do azul, rodeado de brinquedos que são pássaros-canhões. «Louco, sim, louco porque quis grandeza/Qual a Sorte a não dá.» (F. Pessoa). É um rei que Costa Pinheiro não mostra numa rígida composição simétrica, como prefere fazer com D. Pedro, D. Manuel e outros. D. Inês de Castro surge alindada como uma boneca. Seus olhos são corações invertidos e chorosos. D. João II tem o peito e os braços em forma de cruz de Cristo. Tem junto de si um búzio, com que ouve o som do mar; e este é representado com ondas agressivas, desenhadas com traços geométricos rígidos. Em seus olhos, Costa Pinheiro desenha as gaivotas do Tejo, tal como, mais tarde, fará em alguns retratos de Fernando Pessoa. Estes retratos imaginários dos reis, expostos com sucesso em Munique (1966), foram dignificados com o Prémio Burda na «Haus der Kunst», o que abriu as portas da internacionalização ao seu autor.

Nos inícios da época «pop», os «retratos» alcançaram uma imediata comunicabilidade gráfica como a das populares cartas de jogar e a dos esquemáticos desenhos dos compêndios para crianças. A vivacidade dos quadros de Costa Pinheiro nutre-se das reminiscências da sua infância e do convívio com as pessoas simples. Seguiu-se uma fase objetual e conceptual, nos anos setenta. Imitou os brinquedos populares feitos de madeira colorida, e integrou-os em irónicos contextos de ficção científica; inventou códigos para falar poeticamente com os «universonautas». Um exemplo de ambiente é «Citymobil» (1969), projeto imaginário em que a cidade é permanentemente transformada pelos habitantes, de modo lúdico.

Mas o gosto pela obra de Fernando Pessoa conduziu Costa Pinheiro de novo para a Pintura, aproveitando toda a experiência adquirida no Conceptualismo. Fez então a lista descritiva dos objectos e dos espaços de Pessoa, simulando ironicamente um rigor que não pretendia senão fornecer novos dados para a apreensão livremente lírica do caso-Pessoa, poeta e mito entre nós, tão tangível quão fugidio: chapéu, óculos, caneta, boquilha, gaivotas do Rio Tejo, Lisboa, Café Martinho da Arcada…Uma grande exposição de objectos reais de Pessoa e suas representações em pinturas «neo-maneiristas», apresentada na Fundação Gulbenkian, em 1981, foi assinalada com o Prémio AICA-SEC.

Os processos técnicos de Costa Pinheiro são refinados, o que faz dele um representante de uma tendência pictórica recente, já designada por «arte culta». Cada linha coisifica-se, feita e refeita, absoluta, instauradora de estilo e de clareza denotativa. Cores lisas, na série dos reis. Sombreados regrados, modeladores de volumes, na série de Pessoa. Composições hieráticas. Não referem o campesinato junto da Natureza, mas analisam as fantasiosas noções dos factos da História, com os seus mitos guerreiros, religiosos e culturais.

Rui-Mário Gonçalves, 1992

 

 

 

O artista e a obra

António Costa Pinheiro nasceu em Moura, em 1932. Instalado em Lisboa na década de 40, frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e mais tarde, o curso de pintura da Escola Superior de Belas-Artes. Durante este período de formação colabora em ateliers de artes gráficas e arquitetura.

Em 1957, na sequência da participação numa exposição coletiva em Munique (juntamente com René Bertholo, Lourdes Castro e Gonçalo Duarte), obtém uma bolsa e ingressa na Academia de Belas-Artes da mesma cidade, onde foi aluno do pintor Geitlinger e estudou gravura com Mestre Thiermann. Já na década de 60, como bolseiro da recém criada Fundação Calouste Gulbenkian instala-se em Paris, integrando o grupo e o projeto editorial KWY (René Bertholo, Lourdes Castro, Gonçalo Duarte, José Escada, João Vieira, Christo e Ian Voss).

Com uma prática inicial de matriz informalista, a partir da década de 60 toda a produção de Costa Pinheiro passa a ser dominada por uma profunda dimensão poética. A série Reis marca o início de um levantamento mitográfico e simbólico da história e da cultura nacional, que terá continuidade em trabalhos posteriores. Disso são exemplo, os Navegadores ou o ciclo dedicado a Fernando Pessoa e ao seu universo heterónimo. Por outro lado, séries com Citymobil ou La Fenêtre de ma Tête são reveladoras do processo imaginativo que sustenta a sua criação artística.

O reconhecimento do seu trabalho na Alemanha, onde ainda possui atelier, valeu-lhe a atribuição de diversos prémios, entre eles: o Prémio Burda de Pintura na Hans der Kunst de Munique (1966), o Prémio de Pintura da Cidade de Munique (1967) e o Prémio de gravura na Intergrafik 80 de Berlim. Foi igualmente consagrado em Portugal com o Prémio de Pintura BPA – Sociedade Nacional de Belas-Artes (1967), o Prémio de Gravura da Bienal de Vila Nacional de Cerveira (1980), o Prémio Nacional de Pintura atribuído pela secção portuguesa da Associação Internacional de Críticos de Arte (1982) e o Grande Prémio Amadeo Souza-Cardoso (2001).

Costa Pinheiro, que conta no seu percurso com mais de três dezenas de exposições individuais, está representado em inúmeras coleções públicas e privadas em Portugal (Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, Centro de Artes Coleção Manuel de Brito, Núcleo de Arte Contemporânea do Museu Municipal de Tomar e Armazéns das Artes em Alcobaça) e na Alemanha.

Imagination & Ironie de Costa Pinheiro foi editado na Alemanha em 1970. Escreveram sobre o artista, José-Augusto França, Rui Mário Gonçalves, Fernando de Azevedo, Fernando Pernes, Bernardo Pinto de Almeida, Jürgen Claus, entre outros, e foi tema de capa da Colóquio Artes nº 10 e nº 40 (Dezembro de 1972 e Março de 1979).

Gosta deste tópico?
Deixe um comentário

Partilhar esta página