Com o objetivo de melhorar os nossos serviços e a experiência de navegação, informamos que utilizamos cookies.
Aceitar
Recusar
Imagem da Capa: “Desenho” 1951
Visto que «a alegria é a coisa mais séria da vida», podem pintar-se tristes os Arlequins. Tristes e detidos num momento do seu folgar— assim tristes como se estivessem alegres ou tristes. E olhando para o mundo, atentos, muito para além da sua manha e do seu canto. Olhando como Pierrot olharia, se Pierrot pudesse saber a gravidade do viver aventuroso. Se a estátua do amor se move de piedade para a timidez lunar de Pierrot — outro fogo a queima e articula e faz bailar na alegria efusiva de Arlequim. Outro fogo a queima, do sol ou do inferno — do aparente dia natural dos bosques e das ruas da “commedia” ou “da noite real da representação” misteriosa, dessa noite interior que as lâmpadas cortam de luz, e onde gente de ficção pisa um terreno falso e onde saltimbancos se lançam pelo ar e tombam. A noite onde se ri.
Almada pertence a uma geração que entendeu o circo, que entendeu a verdade da noite falsa — e dela escreveu o romance em «Nome de Guerra», que é o único romance moderno português. Se os seus contemporâneos se apartaram dessa noite, Almada ficou — e a verdade, procurou-a ele depois por linhas de uma perigosa sageza.
1952
Se «Começar» é a obra artística mais importante do terceiro quartel do século XX português, a obra-prima pictórica da sua primeira metade é, sem dúvida, a série de frescos da Gare Marítima da Rocha, realizada em 1946 a 49, figurando liricamente Lisboa, os seus domingos populares e os seus emigrantes. Com uma outra obra Almada satisfez as promessas contidas no princípio da sua longa carreira de desenhador, pintor, vitralista, tapeceiro, gravador, decorador e figurinista teatral; e também de bailarino, coreógrafa e de poeta, romancista, contista, dramaturgo, conferencista, ensaísta.
1979
… Cabe, em fim, responder à pergunta formulada pelo título desta coleção, a saber: o que é essencial na abra de Almada Negreiros? Na obra literária, entenda-se, que de literatura é a colecção. Mas é impossível, ou impraticável, falar de Almada-escritor (poeta, romancista, dramaturgo, cronista, pensador) sem falar de Almada-artista (desenhador, pintar, retratista, vitralista, azulejista, figurinista, tapeceiro, gravador) — ou vice-versa. Observar nele a totalidade engloba uma ou outra situação, na essencialidade da procura do Ver a que dedicou a sua vida inteira, ou seja, sessenta anos de existência que cobriram significativamente mais de metade do século XX português. Nesta coleção, por definição dela, a porta de entrada é a literatura, mas já vimos que a porta de saída de um estuda sobre Almada é necessariamente gráfica, ao termo de uma expressão aforística, e numa parede gravada, sem palavras. Para isso o leitor atento foi-o vendo tender desde 1950, pelo menos. Ou desde 1916, se lembrarmos a aposta feita com Amadea e Santa-Rita, diante de Nuno Gonçalves, como razão de ser, ainda não por ele sabida, de uma demanda do sentido mítico nacional. O que é, cama a leitar teve ocasião de constatar, uma diligência eminentemente pedagógica. Por isso se trata, ao cabo, de começar, ou seja de «nascer outra vez», de cada vez, na coerência perfeita (ou possível) de uma obra. Marque-se, então, o essencial dessa obra — em quantas espécies? Uma, duas, cinco, sete, nove, dez, conforme os números que a habitam?
José-Augusto França (1990)
A pintura mural portuguesa alcançou durante os anos 40 um dos seus grandes momentos com a participação de Almada Negreiros na decoração das gares marítimas de Lisboa. Na Gare Marítima de Alcântara (1943-1945), Almada realizou dois trípticos e duas pinturas isoladas. Num dos trípticos representou a cidade de Lisboa vista do Rio Tejo e mulheres no trabalho ribeirinho. Uma das cenas das trabalhadoras é de certo modo uma ilustração do capítulo “Desgraçador” do seu romance Judith — Nome de Guerra, escrito em 1925 e publicado em 1938. Neste tríptico aparece, como nos seus óleos de então, uma luz lateral, definidora das zonas iluminadas e sombrias, em fortes contrastes. Mas, neste caso, a luz representada tem uma direção coincidente com a da luz real das janelas da sala da gare.
Ao lado deste tríptico, Almada representou um domingo na aldeia. O Portugal das pessoas simples do nosso tempo, vivendo no campo ou junto ao porto marítimo, ficou, desse modo, representado com ternura e dignidade.
Na parede oposta, outras pinturas evocam duas lendas populares: num tríptico, a história da Nau Catrineta; na pintura isolada, a Virgem aparecendo a D. Fuas Roupinho. São duas histórias com fim feliz, segundo o gosto popular português.
Na Gare Marítima da Rocha de Conde de Óbidos (1946-1949), Almada realizou dois trípticos: um representa cenas da vida lisboeta ao domingo, junto ao Rio Tejo, e o outro, o tema da emigração. Nestes trípticos, os temas populares foram tratados através de um desenho geométrico de raiz cubista.
Estas pinturas causaram admiração e polémica. Elas afastavam-se da estética vigente durante os anos 30, provocando por isso a desconfiança dos mais velhos. E os jovens artistas, nesse momento, dividiam-se entre o neorrealismo e o abstracionismo. As admiráveis sínteses de Almada sobrepunham-se-lhes. Mais recentemente, os promotores entre nós do pós-modernismo, durante os anos 80, tinham a obrigação cultural de observar as obras de Almada e o seu regionalismo assumido, se não estivessem subjugados por um paradoxal regionalismo alheio...
Estes murais e os numerosos desenhos e guaches que Almada realizou simultaneamente, atualizaram um certo cubismo picassiano de arabesco audacioso. Na estilização das figuras, na demarcação das zonas de luz e sombra, no recorte dos perfis, todas as possibilidades expressivas das linhas foram exploradas. Linhas estruturantes, linhas envolventes... Houve por vezes malícia no modo como acentuaram algum pormenor; enfatizaram a teatralidade dos gestos das figuras humanas; e, ricas de implicações espaciais, as linhas comandaram a composição e manifestaram o construtivismo que, desde o início, interessou a Almada Negreiros e que o levou até ao abstracionismo. Porém, o abstracionismo que apresentou na Primeira Exposição Gulbenkian (1957) e no mural da sede da Fundação Gulbenkian (1968) deve ser já considerado como arte conceptual.
Rui Mário Gonçalves (1990)
CATÁLOGO
1. Primeiro estudo para a decoração do proscénio do Teatro de Muñoz Seca, realizado em Madrid
Arlequim, 1929
Dimensões: 68x1 00 cm
Guache
Colecção do Museu da Chiado
2. Varina, 1946
Dimensões: 69x46 cm
Desenho
Colecção do Museu do Chiado
3. Acrobatas, 1947
Dimensões: 50x63,5 cm
Guache
Colecção do Museu do Chiado
4. Figuras de circo, 1933
Dimensões: 50,2x48,2 cm
Lápis de cera sobre papel
5. Homem, mulher e criança, 1942
Dimensões: 50,8x45,6 cm
Lápis e aguada sobre papel
6. Autoretrato com família, 1944
Dimensões: 53x36,4 cm
Aguarela e lápis
7. Par, s.d.
Dimensões: 50,5x40,5 cm
Desenho
8. Homem com mulher às costas, 1948
Dimensões: 69,5x45,7 cm
Desenho
Estudas para os frescos das Gares Marítimas, s.d (c. 1 946 e c. 1948)
9. Arraial popular
Dimensões: 70x32 cm
Guache
1O. D. Fuas Roupinho
Dimensões: 70,5x36,5 cm
Guache
11. Pescadores no Tejo
Dimensões: 78x58 cm
Guache
12. Mulher na amurada
Dimensões: 50x50 cm
Guache
13. Estudo para
“Começar”, 1 968
Dimensões: 44x213 cm
Caneta de feltro, guache e grafite sobre papel
4 a 13 - Depósito da Arq. José de Almada Negreiros no Museu do Chiado.
O artista e a obra
José Sobral de Almada Negreiros nasceu em São Tomé, a 7 de Abril de 1893. Expôs pela primeira vez em Lisboa, no I Salão dos Humoristas Portugueses, em 1912. Um dos expoentes da cultura portuguesa do século XX, a par do seu companheiro Fernando Pessoas, desenvolveu uma intensa atividade, tendo tido um papel preponderante como impulsionador, entre nós, dos movimentos modernista e futurista em partícula, cerca de 1915. Como poeta, dramaturgo e romancista, deve-se-lhe uma vasta obra publicada em quatro coleções de “Obras Completas”. Entre os seus volumes, contam especialmente “A Invenção do Dia Claro” (1921) e o romance “Nome de Guerra”(1925-1938). Colaborou nas revistas “Orpheu” (1915) e “Portugal Futurista” (1917), “Contemporânea” e “Athena” e editou pessoalmente “SW, Sudoeste” (1935). Publicou importantes manifestos, como “Primeira Descoberta de Portugal na Europa de Portugal do século XX”, a propósito da exposição, em 1916, de Amadeu de Souza-Cardoso, em Lisboa, o “Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX” (“Portugal Futurista”, 1917) e o famoso “Manifesto Anti-Dantas” (1915). Em 1931 publicou a conferência-manifesto “Direcção Única”. Tendo estado em Paris, entre 1919 e 1920, partiu em 1927 para Espanha, onde permaneceu até 1932, aí realizando decorações no Cine S. Carlos, no Cine Barceló e Teatro Munõz Seca, de Madrid. Em Lisboa, colaborou largamente na “Exposição do Mundo Português” de 1940. A sua multifacetada no domínio das artes plásticas, abrangeu setores como os de desenho, da pintura, da gravura, da tapeçaria, do vitral da Igreja de Fátima (1938), os frescos das Gares Marítimas, em Lisboa (1946-1949), e as paredes incisas da Cidade Universitária (1957-1961). Foram-lhe atribuídos os prémios Columbano (1943), Domingos Sequeira (1946) e o Prémio Nacional de Arte (1959). Dedicou-se a importantes estudos sobre os Painéis de Nuno Gonçalves desde 1916, e de 1926 até falecer em 1970. Figurou na Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, com parede gravada “Começar” – espécie de testemunho poético-filosófico com que termina a presente exposição.
Edições completas das Obras de Almada Negreiros: Estampa, Lisboa, 1970-1972 (6 volumes); IN – CM, Lisboa, 1988-1994 (7 volumes); Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997 (1 vol. 1123 p. papel-bíblia); Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, (10 volumes).
Bibliografia principal: FRANÇA, José-Augusto, Almada Negreiros, o Português sem Mestre, Lisboa, 1974 (2ª ed. 1988); FRANÇA, José-Augusto, O essencial sobre Almada Negreiros, Lisboa, 2003; Catálogo da Exposição Almada Negreiros, FCG/ CAM, Lisboa, 1984; Catálogo da Exposição Almada Negreiros, CCB, Lisboa, 1993.
Gosto (0)